quinta-feira, 23 de maio de 2013

você sabia que lá pelo tempo das cavernas, a mulher é que era “o cara”? tipo assim... por dar à luz um novo ser, fenômeno até então inexplicável, uma vez que não se atribuía a gravidez à prática do sexo, as sociedades ultraprimitivas meio que mistificavam suas mulheres. elas eram, então, seres divinos, iluminados ou coisa que os valha, o homem mesmo só prestava pra caçar e fazer o serviço pesado. quando este percebeu, porém, que de cada caroço cuspido na terra brotava um enorme pé de qualquer coisa, juntou dois e dois, tornou-se papai e passou a se valorizar e a exigir seus direitos. criou-se assim o conceito de monogamia, propriedade privada, o ciúme e suas derivações, tudo na base da paulada, é verdade. à força, o homem se impôs através dos tempos e toda briga de bar ou grande guerra tem origem na busca por poder e território, quase sempre o campo minado do coração de uma mulher. não há no mundo outra coisa para o macho senão a sua afirmação, a ilusão de sua importância e singularidade. penso nas conquistas femininas ao longo do último século, nessa coisa de amor cavalheiresco a que se refere o Deleuze, no retrocesso geral que vocês, Afrodites de toda a sorte, vêm hasteando, e a parte mais cruel dessa transição, dessa avalanche de libido prestes a romper a casca do novo, é a nossa eterna menina pensar que tudo o quanto a fez suspirar ontem, de prazer, inclusive (!), foi mentira. sei que amores vêm e vão, o que é saudável, e o próximo há de ser, por que não, melhor – nós evoluímos, pois. mas parece que a memória emotiva da mulher, ao menos no que diz respeito às suas últimas e avassaladoras paixões, é mais frágil e curta que a do homem. talvez isso, mais do que o patriarcado de cinco mil anos, explique o maior número de poetas, românticos em geral e suicidas notáveis do gênero masculino. ao passo que verdadeiros homens das cavernas têm ainda hoje levado muitas mulheres, ditas esclarecidas, para a cama. e o mais impressionante: na conversa! 

sexta-feira, 10 de maio de 2013


é uma conta sem fim: o artista que se pinta pintando que se pinta pintando que se pinta... e por aí vai. pois se o nariz de palhaço de cada um é o que chega antes, todo pranto, desdém ou ar blasé, esconde atrás outro nariz de palhaço sobre outro pranto, desdém e ar blasé atrás de... ufa! num clique, porém, o artista, não menos hilário e complexo que sua “obra”, Márcio Nunes, captou tudo que pode conter o ridículo de se despir, em todas as acepções da palavra, diante de uma câmera. de posse apenas da tristeza e do secular artifício clownesco, nesse caso um nariz negro em sinal de luto, os amigos do fotógrafo, além do próprio – foto da foto da foto etc. – encararam a lente para um inusitado ensaio sobre a alma humana. como uma espécie de preparador de elenco, sem os requintes de crueldade de uma Fátima Toledo, é claro, mas com a persistência de quem, por conhecimento, sabe como arrancar o “melhor” de cada “ator”, Márcio registrou em seu estúdio, diferentes “interpretações”, através de rituais, os mais diversos. conta-se, por exemplo, que uma famosa atriz (atriz mesmo!), já embriagada, ousou lanhar-se toda, possuída da emoção de sua “cena”. à exceção da regra, teve moça que preferisse não cobrir os seios com as mãos e marmanjo se recusando a tirar a camisa. houve ainda quem se debulhasse em lágrimas, algumas expressões sisudas e até semissorrisos. não se trata, pois, de um retrato fiel da angústia, mas um flagrante daquilo que não se revela, a imagem subliminar entre uma e outra pose. não o que é invisível a olho nu, mas o próprio olho nu quando distraído de si. quem, no entanto, como este que vos fala, por timidez ou vaidade (no fundo a mesma coisa!), encarou tudo como uma aventura estética, desviou do próprio olhar, recorreu ao cigarro e não se permitiu ver exposto o íntimo de sua alma, certamente se saiu bem na foto... e bancou o palhaço, o que já não é pouco!




sobre a gênese do espírito criativo: erámos nós os deuses?

uma ou outra coisa a cerca do zodíaco aprendi com minha mãe, astróloga honorária. aprendi, por exemplo, que à tríade dos signos de elemento fogo pode-se aplicar a seguinte metáfora: o Áries dá a ideia, o Leão descola o isqueiro e o Sagitário incendeia. Caio Sóh, no entanto, a despeito de se ater a esta última, sua característica astral correspondente, decidiu por conceber, produzir e estrelar o Big Bang ele mesmo – sim, o universo é, ao mesmo tempo, sua obra e Caio em si, não obstante seja, de acordo com a crença, chamá-lo Deus. ainda sobre “astros”, o Varandista Pedro Barnez, que é também metade cavalo, dispensa o prognóstico e galopa igualmente intenso e em sentido oposto o universo “imaginário” de Caio, mais ou menos como um alter-ego divino. e quem há de provar que este não é, em verdade, aquele e vice-versa? desta forma, se somos todos uma ilusão, Pedro representa um estado de consciência “supremo” que torna viável a aventura de existirmos como coisas inventadas mesmo e não, como querem os céticos, uma submatéria da grande explosão (ou porre!). mas em algum lugar entre o passado e a realidade, para além da ciência e do sagrado e com um pé em cada corda da poesia de um e outro (infinitas porque paralelas), me inventei à minha maneira: o vão central. e se, de dentro de meu Aquário insólito, num salto, passei a integrá-los, talvez como a outra face de um triângulo isóscele onde ora me equilibro, ora “caio” – não temos vértice, pois –, o que nos aproxima e reflete é, de fato, o afeto, vê-se a olho nu. anos-luz depois do fim, Marias ainda hão de reluzir nas varandas. estrela é uma questão de estar e poesia, maneira de dizer.

lembro de minha irmã sonhar com o amor de sua vida – já morto – e este lhe dizer em alemão: “a vida é somente um sonho”. lembro a Carol em uníssono com o Mário, revelando os mistérios de Calderón de La Barca: “sonhos, sonhos são”. lembro o Caio Sóh na canção que só eu lembro e de reconhecê-lo em suas palavras: “será que o sonho adormeceu?” lembro de mim, mais sábio e jovem, em destemidas tatuagens por aí: “não durma antes de sonhar”. lembro tanta coisa inesquecível que periga a memória não comportar o inédito e eu me pegar sonhando com um passado fictício por puro golpe de imaginação, desde um gol do Romário com a camisa do Botafogo a uma verdade varandista lúcida, harmônica e abastada – maldades do inconsciente! não sou, porém, o que se costuma chamar de saudosista. aliás, o que mais prezo em minhas lembranças é o fato de estarem intactas, me orgulhe eu delas ou não. ao contrário do ditado russo que afirma que o futuro é certo, mas o passado muda a todo instante, gosto de me ater à beleza simples do ontem perfeito – porque acabado – e do amanhã em branco. não desperdiçaria um tostão do que sou para reviver ou recriar coisa alguma. se eu tivesse escolhido ser comediante, por exemplo, incluiria esta resenha num livro intitulado “crônicas agudas.” quem escreve a sério, no entanto, só é engraçado quando erra – não que o humor seja um erro, mas para um poeta metido a escrever prosa, um erro soaria cômico, ao passo que para um médico, o erro é, senão, algo trágico – e eu até posso errar, claro. digamos, apenas, que eu não queira e prefira nem dar nome ao livro, lançá-lo já seria uma pachorra. se eu fosse um comediante, pois, esta resenha teria alguma graça ou eu seria um embuste, um mero cronista com nariz de palhaço e sem platéia ou com a platéia errada, o que tampouco me interessa. ainda bem que “a gente é para o que nasce” e não se nasce duas vezes, como acreditam os cardecistas. se há, portanto, alguma graça e certeza nessa vida é que a vida é mesmo essa e só. “não basta!” – diria Silvana, vestida de Carol. penso no ‘De Repente’ e não sei bem precisar se penso na Silvana ou na Carol ou na peça ou na letra que Antônio revelava ser sua ou na própria vida quando respondo em sonho às minhas próprias palavras com palavras do Chico na canção homônima ao clássico de Calderón: “nunca na vida foste minha...”. enfim. deve haver uma palavra em alemão para este sentimento que já passou de raiva, dor e saudade.

“quem não tem dinheiro para o cigarro não deve fumar”. vi isso num filme, não lembro qual. mas aí não sobra nada, né? não estou chorando miséria, nem quero preocupar ninguém à toa (pretensioso eu!). é que na solidão, mais do que na pobreza, a gente passa a rever certos valores – não, ainda não deixei o vício – e eu sinto uma saudade, mas uma saudade que não cabe em mim. será a abstinência? saudade de quase tudo, da semana passada se bobear. às vezes me acho um chato. a propósito, quem leu o Veríssimo ontem? falava justamente do tema. ele classifica os mais diversos tipos de chato – não encontrei nenhum à minha altura. engraçado que tive a impressão perfeita de já ter lido aquele artigo. talvez, quando não tenha assunto, ele dê um "migué" e publique textos antigos – só chatos como eu lembrariam. mas, inédito ou não, o Veríssimo é mesmo o cara! encontrei um seu livro de crônicas aqui em Teresópolis e reli numa só noite. chato é que minha biblioteca ficou espalhada pela casa. tinha até um Sallinger na antiga adega (maturando talvez?) e um Goethe na garagem. reparei que li bastante na minha “juventude”, de Joyce – o Ulisses que nunca terminei – a Garcia Marquez, de Kafka a Saramago, de Nietzsche a Focault. poesia, teatro, biografias (tem uma ótima da Nara Leão) e toda a sorte de blablablás, fora o que deixei para a Carol na partilha. adorei foi ter encontrado as cartinhas de ex-namoradas, muito embora as datas e fotografias tenham me deixado mais velho num fechar de baú. o manuscrito de Jardim de Alah, o esboço de uma entrevista comigo mesmo, o ingresso de Minutos Atrás, no Café Pequeno, o convite de casamento do Cardoso, de quem fui padrinho. está tudo aqui, quase como se nada tivesse acontecido – será que preciso alugar um smoking para a cerimônia? ah, não, foi em 2004! a Luíza, aliás, estava linda de vestido verde. até hoje fui o único homem que a levou para o altar, formávamos um belo casal. enfim. não achei, porém, meus textos da faculdade de sociologia, e sei também que não teria saco para tanto Marx, Webber, Durkheim e Tocqueville. pensando bem, pra que me serviram? eu devia ter lido mais auto-ajudas da minha irmã, tipo Pai rico, pai pobre, sei lá. queria agora estar no Rio, batendo papo furado que é afinal o que faço melhor depois de sentir saudades... preciso de um cigarro.quase tudo, da semana passada se bobear. às vezes me acho um chato. aliás, quem leu o Veríssimo ontem? falava justamente do tema. ele classifica os mais diversos tipos de chato – não encontrei nenhum à minha altura. engraçado que tive a impressão perfeita de já ter lido aquele artigo. talvez, quando não tem assunto, ele envie textos antigos – só chatos como eu lembrariam. mas, inédito ou não, o Veríssimo é mesmo o cara! Encontrei um seu livro de crônicas aqui em Teresópolis e reli numa só noite. minha biblioteca ficou espalhada pela casa, tinha um Sallinger na antiga adega (maturando talvez?) e um Goethe na garagem. reparei que li bastante na minha “juventude”. de Joyce – o Ulisses que nunca terminei – a Garcia Marquez, de Kafka a Saramago, de Nietzsche a Focault. poesia, teatro, biografias – tem uma ótima da Nara Leão – e toda a sorte de blablablás, fora o que deixei para a Carol na partilha. adorei foi ter encontrado as cartinhas de ex-namoradas, muito embora as datas e fotografias tenham me deixado mais velho num fechar de baú. o manuscrito de Jardim de Alah, o esboço de uma entrevista comigo mesmo, o ingresso de Minutos Atrás, no Café Pequeno, o convite de casamento do Cardoso, de quem fui padrinho. está tudo aqui, quase como se nada tivesse acontecido – será que preciso alugar um smoking para a cerimônia? ah, não, foi em 2004! a Luíza, aliás, estava linda de vestido verde. até hoje fui o único homem que a levou para o altar, formávamos um belo casal. enfim. não achei, porém, meus textos da faculdade de sociologia, e sei também que não teria saco para tanto Marx, Webber, Durkheim e Tocqueville. pensando bem, pra que me serviram? eu devia ter lido mais auto-ajudas da minha irmã, tipo Pai rico, pai pobre, sei lá. queria estar no Rio, batendo papo furado que é afinal o que faço melhor depois de sentir saudades... preciso de um cigarro.

o Chico Buarque acha Every time we say goodbye a música mais bonita do mundo. pode ser. a música do Cole Porter adaptada para o português por Carlos Rennó também é belíssima na voz de Cassia Eller. e, recentemente, o Dani me mostrou uma versão de seu pai, Arnaldo Black, que faz jus à original. mas se o Chico acha Every time we say goodbye a música mais bonita do mundo, o que fazer com as músicas mais bonitas do Chico? é claro que pega mal o sujeito eleger essa ou aquela música própria a tal posto e talvez ele prefira mesmo o Cole Porter, o Gershwin, o Berlin ou o Jobim, afinal o Chico também é fã. e eu que sou fã do Chico ainda mais que do Porter, Gershwin, Berlin e Jobim, teria umas 20 ou 30 músicas do Chico, sozinho ou com o próprio Tom ou com o Edu ou com o Francis, para figurar entre as 20 ou 30 mais bonitas do mundo. nesse seu último disco mesmo, a valsa Nina é, sem dúvida, das músicas mais bonitas já feitas. o desafio é escolher uma, a música mais bonita do mundo, como a música de Maghé Dyzi, no poema de Pedro Barnez. e tem tanta coisa além do Chico... teve época de eu achar Dindi (olha o maestro soberano aí de novo!) a música mais bonita do mundo. mas tem Samba em Prelúdio, Vinícius e Baden, tem o Mundo é um Moinho, do Cartola, cuja interpretação do Aureo, acredite!, é das melhores do mundo, tamanha a compreensão da obra! ah, tem as músicas instrumentais do Aureo – bem, mas vamos voltar ao quesito canção, que senão também vira zona! tem Drão, do Gil, na voz do Caetano, (aliás, Caetano cantando La Barca ou Billie Jean ou qualquer coisa, é sempre a melhor música do mundo!), tem Nana cantando a Canção do Tempo, de Caymmi, tem Vive, do Djavan, por ele mesmo, Três Apitos, do Noel, cantada por Chico! enfim. de Camisa Amarela, de Ari Barroso, a Asa Branca, de Gonzagão; de Yesterday ou Let it be ou Hey Jude, dos Beatles, a Fake Plastic Trees, do Radiohead, a música mais bonita do mundo nunca é a nossa, mas é sempre como se fosse. (se bem que o Gugu cantando A Culpa, não sei não!). é tudo o que queremos por um momento. depois passa, como as paixões, e surge outra mais bonita e outra e outra. acho que a música mais bonita do mundo está sempre por ser feita e para tanto é preciso amor! Let’s do it e viva o Cole Porter!


O mito de Rahsa Ssale jamais ganharia força para além de sua época senão através dos curiosos da alma humana e suas facetas mais vis. Reza a lenda que vivia como as donzelas de então, à espera de um bravo infante que a desposasse com toda pompa e circunstância. Quis o destino, porém, que a nobre e abastada princesa Airam, cuja lira encantava a todos, arrebatasse o coração daquela simples camponesa dos arredores de Bacoroso. 

Não eram ainda tempos de telenovela e cantoras de MPB e aquele principado estava sob o espectro de costumes morais retrógrados, contra os quais a própria Rahsa se negava a lutar. Não admitia nem diante do espelho a idéia de estar apaixonada pela herdeira do trono de D’ugá, repudiava-a com mais fervor do que as chamas a que seu próprio coração a condenara e mesmo quando já tomada pelo langor de seu desejo obscuro, convencia-se – e aos outros – de que estava a enamorar um jovem cavalheiro de traços delicados, mas pulso firme. 

A princesa, apesar de amável e zelosa, sabia, sim, ser justa e muito rígida – virtudes pelas quais fizera jus à adoração popular. Não entendia, pois, como pudesse ser responsável a um só tempo por tanto clamor público e desdém matrimonial, por assim dizer. Rhasa, por sua vez, queixava-se sem cerimônia a quem quer que fosse das dificuldades de se amar alguém com os afazeres e a exposição de Airam, muito embora nunca tenha deixado de gozar do status de consorte, das jóias da coroa e de tudo quanto sua nova posição, ainda que secreta, lhe passara a proporcionar. Airam compreendia que seu amor era recíproco e verdadeiro, mas esperava de sua amada a mesma devoção e carinho, o mesmo brilho nos olhos que a faziam suspirar. 

Um dia, farta daquela situação inóspita, decretou a proibição, em toda a cercania, do porte e consumo de amores não consumados, desejos mal resolvidos e sentimentos confusos em geral. Houve um surto num primeiro momento e as cadeias e calabouços não comportaram a quase totalidade da população. Foi dada, então, anistia aos jovens, salvo os reincidentes, aos poetas românticos e adotou-se a política de vista grossa para as mulheres do signo de virgem. Rhasa Ssale, no entanto, só viu ameaçada sua liberdade quando a princesa preparou um novo pronunciamento. Temia que fosse o divórcio, em represália à sua eterna rejeição – assim, ela deixaria de dispor de qualquer tipo de imunidade. 

Eis que, do alto de seu púlpito, diante de uma multidão abarrotada, Airam, simplesmente, abdicou do trono, mais ou menos como Jânio, nos idos da década de 60 e, mais recentemente, o Papa Bento XVI, para espanto de todos! Em seu último discurso, a princesa de D’ugá, em demonstração absoluta de humildade, reafirmou a importância de seu ato, mas julgou-se incapaz, por motivo de força maior, de condenar a amante. Disse que morreria ao seu lado se o povo assim quisesse e lançou um olhar comovente em direção a ela, digno dos heróis épicos. 

Mas quando os súditos, quedados de ternura e piedade, surpreenderam a princesa emérita com aplausos e ovações, esta, agora uma cidadã comum, num rompante de paixão sem precedentes, estendeu a mão para Rahsa, como que a convidá-la a ser feliz longe dali: “vamos!” – quase podia-se ouvir – “é tempo de liberdade”. Ao que a ex-camponesa de Bacoroso, lívida e segura de suas amarras, respondeu a todo volume: “sou mulher do príncipe de D’ugá e daqui não saio!” 

Dali em diante, tudo foi senão silêncio e ninguém jamais pôde entender o que afinal se passava na cabeça e no coração de Rahsa Ssale. Airam, desolada, deixou D’ugá até que seu espírito sossegasse e ela então se desse conta dos limites de seu poder sobre a misteriosa condição feminina. Voltou, tempos depois, casada e radiante com a princesa Alu, do reino de Eçal, com quem adotara um filho, e retomou o poder, eleita democraticamente pela população de seu país, agora uma república federativa. 

Pouco se pode afirmar sobre o paradeiro de Rahsa e estima-se que tenha passado o resto de seus dias entre o autoflagelo e a prática inusitada de ménage à trois tântrico, modalidade por ela inventada. Seja como for, Ssale até hoje desperta a indignação de minorias mundo afora e inspira jovens atrizes abiloladas do TBC, o teatro blasé carioca. É... Como diz o sábio Inad Kcalb, “a vida é cheia dessas coisas que não se pode entender!” 


VERDADE VARANDISTA (A SECO)

É bonito também ver um lampejo de lucidez arrebatar um sonhador convicto. E como tivesse presenciado alguma façanha do Tó (Brandileone, do 5 a Seco), que de certo lhe atingira o ego, Tomaz, em tom de autocrítica e não sem o deboche que lhe é peculiar, indagou: "por que nós (os Varandistas) passamos a imagem de bêbados?" Ali, no cenário daquela fatídica e controversa padoca, um último romântico parecia, enfim, entender certas coisas sobre nossa trajetória – ou sina –  e com a leveza que só cabe aos grandes. "Bem, talvez porque estejamos sempre bêbados mesmo" – ainda pensei. Mas é claro que a pergunta ficou suspensa, pairando no ar de nossas reflexões, de nosso mea culpa, como se a julgar pela postura de Tó & Cia, pudesse se justificar o nosso fim (e alcoolismo) precoce!

Antes disso, porém, no último show do Sarau, – projeto cujo conceito, a meu ver, não se assemelha nem de longe à proposta varandista (e também por essa razão é que participo, mas isso renderia outra crônica, quiçá um ensaio, com ares de novela, sim, mas nunca um romance) – havíamos convidado os nossos anfitriões (!) paulistas ao palco do Tom Jazz. Pois bem. Em nossa estreia em São Paulo, lá estavam, além do Tó, o Vinícius Calderoni e o Leo Bianchini nos agraciando com uma canja.

Sucede que lá pelas tantas, este que vos fala (já bêbado, confesso) decide apimentar ainda mais o que, na verdade, só parecia esquentar a nossa cabeça. Contei àquela pequena multidão que lotava a casa numa fria noite de primavera, sobre um certo e extinto "bando" reunido em fins da última década e de uma possível rixa com o 5 a Seco, ali presente. Depois olhei para os meninos como que a perguntar: "e então?" – ao que o pobre Leo, de pronto, responde com um aceno de cabeça e um polegar em riste irrefutáveis – sim, havia uma rixa! Os outros (inclusive os "nossos"), embora tímidos e menos certos da polêmica, não chegaram a se desconsertar nem tampouco se amarelaram os sorrisos. Tudo se deu, é claro, em tom de brincadeira, como, afinal, teria de ser.

Chegamos até a retomar a discussão, tempos depois na Pizzaria Guanabara, John, Aureo, os Pedros (Altério e Viáfora, também do 5) e eu, sem conclusões muito definitivas, acho – talvez estivéssemos bêbados ou eu estivesse mais bêbado que eles e não lembro se chegamos a conclusões muito definitivas. Enfim... Nunca soube ao certo o que pensam nossos arquirrivais mais queridos sobre o tema e acredito, pela seriedade e destreza com que tocam as coisas, esse embate nunca lhes deva ter causado frisson. Nem a nós, pensando bem, mas por razões opostas. Estávamos sempre tão ensimesmados que, em tempos remotos, onde a tal peleja teria se dado, no auge de nossa euforia e soberba, mal tomávamos conhecimento de que tínhamos "concorrência".

Fato é que, se havia uma espécie de corrida pelo ouro, ainda que inconsciente, perdemos o bonde da história sob o lema tragicômico da bandeira que empunhamos desde sempre: "tranqüilidade, vai dar tudo errado!" A máxima de Caio Sóh, no entanto, não é um convite à resignação. Ao contrário, é um brado pela ingenuidade perdida e, em nosso caso, uma convicção no afeto levado às últimas conseqüências (vide a teoria do Homem Cordial, se não for demasiada pretensão!). Por isso hoje, ainda que o assunto não me queime tanto a mufa, quando penso no que poderíamos ter feito diferente, absolvo-nos de qualquer imprudência, imperícia ou negligência cometida – desconfio até que nem bebíamos como agora! Deixo ao tempo a missão de fazer jus a esse encontro para além de nossa memória, o que já não é pouco, agradeço a sorte de sermos amigos para além do mercado e de existir, absoluto, o 5 a Seco para além de qualquer varanda, sacudindo os corações em seus varais. Viva os bons ventos da nova música brasileira!
nunca fui de esquerda. não simpatizo com os ideais de Marx, Lenin, Trotski, o diabo. não acredito em Cuba como uma experiência romântica nem sou afeito à imagem de Che estampada nas camisetas de estudantes da Puc, pronto, falei! cresci atento às palavras de meu pai quando discorria sobre 1964: - o anti-golpe... – sabe lá. eu era ainda mais jovem do que sou quando descobri ser tarde demais para esse assunto, peguei meu violão e criei asas para além da arena (ai, os trocadilhos!). quem pensa o mundo tanto assim depois dos vinte? é tudo uma questão de bar ou, quando muito, sofrer de amor e "falar mal do mundo...". neste Natal, porém, ao contrário dos demais, onde o presenteado era eu e não havia restrições financeiras nem a expectativa pelo modesto adiantamento da gravadora, muito menos a preocupação se o cheque especial que o Itaú me concedera levaria metade do mérito pela minha obra, neste Natal é que me deparei com o espectro do capitalismo refletido nas vitrines de um shopping! eu que só queria ser um bom tio, um bom padrinho, um filho exemplar, um namorado fofo... qual o quê! meu fracasso parecia evidente em códigos de barra e em cada sorriso amarelo de vendedores solícitos. tudo se mostrava a mim como é: caro! mas não se trata, aqui, de dinheiro, acredite. o que é irremediavelmente caro é o tempo. a mágica do capitalismo nos coloca diante de um paradigma de tempo, através do qual as crianças crescem, os pais criam rugas, os relacionamentos fazem bodas e os seus laços residem no valor deduzido de mercado. há um senso qualquer que me coloca hoje diante de uma responsabilidade afetiva sem espaço para cartinhas singelas ou presentes usados. minha relação com minha sobrinha, por exemplo, passou a custar vinte e poucos reais compilados na biografia do Fiuk! em suma, o mercado tornou démodé a boa (e velha) intenção, o que não chega a me assustar, repito: o problema é o tempo! não é fácil, ainda mais em época de crise, virar Papai Noel da noite pro dia. mais do que um saco vazio, me pesa a constatação dos primeiros fios de barba brancos.


tinha uma menina paulista, paulista mesmo, não com um s de paulista inexplicável, mas com o sotaque de paulista completo, embora sem aquele ar blasé que paulista costuma ter. e era uma menina do mundo, o mundo cabia mesmo em suas mãos, não importava o resto do mundo, ela punha o mundo nas costas com uma leveza que ninguém no mundo tem. e eu que sou carioca e não sou bobo nem nada, porque carioca, a gente sabe, não é bobo nem nada e acha tudo que tem um rei na barriga e vai ver tem mesmo, tratei de chegar junto e chegar manso – não tão manso que é pra não assustar de tanta mansidão, que aí também é chato e eu não sou mineiro. então a coisa se deu toda assim, meio lá e cá, mas a gente que é carioca e não é bobo nem nada e vai ver tem tudo um rei na barriga, a gente sabe que aqui é que a coisa se dá de verdade, né? é essa coisa da praia, eu acho, e uma preguiça no corpo e um não sei quê mais que faz a coisa ficar ainda melhor e coisa e tal. só que agora, sei lá, fica essa praia toda, pra quê tanta praia?, e um vazio na alma, pra quê tanta alma?, que a gente até se atrapalha e se pega pensando, agora veja!, se pega pensando em partir. e por quê não São Paulo? aquela garoa e a Rua Augusta e o John, o Lenine, a Bruna, o Toni, o Paulinho, o 5 a Seco, o Pedro Barnez, por que não? claro que tem o lance da grana, mas grana sempre foi mero detalhe pra mim, eu que não sou rico nem tenho que me preocupar com grana e São Paulo é, afinal, o lugar onde a grana está, além dos japoneses e tudo mais. acontece que sou carioca, carioca acha tudo que tem um rei na barriga e eu tô mais querendo é ficar de boa porque é de boa que a vida se dá. daí, quando der eu dou um pulo lá e trago de volta e de vez aquela paulista, paulista mesmo, não com um s de paulista inexplicável. além do quê, ela é do mundo, o mundo cabe mesmo em suas mãos, ao contrário de mim, carioca, cujo mundo, a gente sabe, é enorme, vai do Leme ao Pontal e gira ao redor do umbigo. ser carioca é ter tudo um rei na barriga e não ser bobo de deixar a Isa dando sopa em Sampa. 

como pode não sobrar nada? absolutamente nada! um nada tão oco que chega a ser duro. mentira, não é duro nem nada. nem é palpável. e não porque seja etéreo, simplesmente não há. lembranças ocas, ocasionais. um gesto, um riso, um gozo. em suma, nada. absolutamente nada. não é complexo tampouco. aliás, é raso, como a beira de um mar que deu pra trás. é criança, que finge se iludir com o tamanho da onda e sua coragem de enfrentá-la. não há nada nem nunca houve. não porque sonhamos – isso já seria alguma coisa. é que se o passado não ecoa, deixa de existir, vira delírio. pelo menos de estrelas mortas se pode ver o brilho anos-luz depois. mas e nós, cujo pecado e castigo foi não morrer em chamas? nos demos ao desfrute de estar vivos e nada! não sei quantas pintas, coisas pontuais, a cor das auréolas, o umbigo, que murmúrios fora de si. não lembro o perfume senão noutra pele, daí é só cheiro do cheiro, não é nada. nós então não somos nada. sei dos fatos, mas não existem fatos para além de interpretações. é o que eu quiser que seja e eu não quero nada, pois, que seja real. talvez no fato de não haver nada, de nunca ter havido, é onde repousem algum mistério e beleza, como a ideia vaga e irretocável que não se sabe de onde vem. assim, invento-nos, eventualmente, meio sem saber por quê. não pretendo alterar nada do nada que nos cabe e nem caberia a essa altura querer acrescentar nenhuma possibilidade de nada. não há nada, enfim, nem nunca seremos nada a não ser lenda, maldade que o povo comenta. um dia fulano tomou sicrana de beltrano, um bafafá, diz que até hoje se estranham e que o tal, o sem-vergonha, se fez de amigo do outro e o outro não perdoou, coitado. a moça, parece, gostava do tal que chegou de mansinho e, como não fosse santa, se apressou em dar no pé. depois, ninguém sabe o que houve, a coisa não foi adiante e o tal até se ajeitou com uma outra, mas a outra, segundo se diz, nunca engoliu essa historia e era briga a dar com pau. mas isso já faz uma cara e ninguém tem nada que ver com isso, então deixe de prosa, comadre, que eu não sou de falar do que eu não sei! e ninguém sabe ao certo de nada, porque não sobrou nada do nada que nunca houve. nem poema nem dedicatória. nem a dor do amigo nem o íntimo pedido de perdão. nem o ciúme da outra nem música da Maria. nem camisa do Botafogo nem nada. absolutamente nada.  

a memória privilegiada de um homem o torna, fatalmente, um romântico convicto ou um cafajeste irremediável, quando não as duas coisas. me lembro da primeira mulher por quem me apaixonei, a Fernanda, ainda no segundo jardim. e como eu fosse um tipo assim mais tímido, ela tomou a iniciativa e, um belo dia, na hora do recreio, passou batom vermelho, me beijou a bochecha e eu desmaiei de mentirinha, todo bobo. foi! senão pergunte ao Milton, ao Rafael, ao Thiago, à Carol, à Mariana, toda a turma da Tia Márcia na Escola Florescer. bem, talvez eles não lembrem, mas eu sim. quem esqueceria um beijo de batom na bochecha aos 5 anos de idade? depois, no Instituto Guanabara, mais maduro um pouco, me encantei pela Vanessa, uma morena linda de olhos amendoados e perninhas grossas. mas essa não me dava bola, só tinha olhos para o Vinícius Brasil, desconfio que nem nunca trocamos um aceno. passada a alfabetização tive de mudar de escola porque o Chris fora reprovado e deixei aquele amor não correspondido pra trás. no colégio novo, comecei um longo namoro com a Cláudia. daí rolou até beijo na boca e medo de pegar sapinho! ela era doce e, embora muito ciumenta, ficamos firmes até a segunda série quando, então, pintou a Stella. foi a primeira vez que minha mãe teve de comparecer à diretoria e escutar as piores coisas a meu respeito, as quais neguei, é claro, mas promoveram acareação e o diabo, quase o pai da menina me tira o cinto. um constrangimento! assim... eu me lembro de tê-la, digamos, acariciado, não era pra tanto aquele auê! além do mais, eu era só um menino – e um menino apaixonado! parecia que eu tinha, sei lá, tocado o seu sexo ainda impúbere, num espasmo precoce de malícia e torpor em plena fila do bebedouro. um exagero que só os adultos, o Nabokov e a poesia dão conta. saudações ao meu amigo e fiel escudeiro gordinho, o Leon, que tudo viu e jamais disse palavra. crianças! nunca fui dado a professoras ou mulheres mais velhas em geral. gostava mesmo das meninas e, confesso, tive uma vida amorosa intensa até o fim do primário. daí vêm as espinhas, a maldade, a concorrência, a álgebra, a geometria e o medo de crescer. pouco importa a memória. se o homem esquece o seu tamanho, passa uma vida a se apaixonar por menininhas...

eu não sei bem o que é a vida, mas tem todo um cheiro da casa da Nathália e uma ausência doída do Léo Rosa, que deve ser mais doída pra Nathália do que pra mim e ainda mais doída pro Léo, que optou por doer. sei que tem a Lou, com ironia e tudo, tem uma pilha de louças pra lavar, um disco do Caetano ao fundo e um Dani Black que recusa-se a lembrar que o nome do disco é mesmo Fina Estampa. quem bebe mais a vida sou eu, claro, porque é assim que a vida costuma ser e eu não a renego nem nada, então trato de abrir a janela pra fumar, afinal a Letícia tá gripada e sem voz. e se o violão cai no meu colo é que alguém cansou e todo mundo acha um absurdo eu não saber tocar minhas músicas com o Aureo, mas ainda assim eu toco, como um menino sem intimidade com o corpo de uma mulher e a mulher se chama Ruth. parece poesia o que eu faço, embora eu não saiba ao certo o que é a vida senão quando a Letícia diz que eu canto bonito, que parece minha voz falada, assim, sem mais. e acho que deve ser bonito mesmo porque assim, sem mais, não tem mistério nem tipo, tipo as coisas como elas realmente são. é que o Dani canta melhor que todo mundo depois do Caetano e o violão sempre volta pra ele, daí a noite fica animada de novo (o Caio e eu descobrimos que Dani Black não contém dor, feito paixão madura, o que não é bom nem ruim, só é maduro). quando o mundo vai dormir, ficamos Nathália e eu, e eu não sei bem o que é a vida sem Fernando Pessoa e, mais recentemente, Roger Vadim e suas memórias de paixões violentas. por que tudo sempre termina nisso? eu não sei bem de muita coisa nem porque eu odeio a minha ex se a Nathália ainda ama o Léo. só sei que se um dia eu escrever minhas memórias, haverá sempre um cheiro de casa da Nathália, uma ausência doída de Léo Rosa, a ironia da Louise, Dani maduro, Fina Estampa, Letícia etc. e vai ver é isso que é a vida! se eu escrever memórias, é que terei sido em vida mais apaixonado que violento. terei amado mais que odiado minhas briggites tupiniquins. numas coisas o chato do Nelson Rodrigues tinha razão: a vida é como ela é (‘’mas o homem não gosta de bater!’’).

o Dani Black é mesmo um sujeito nobre de simples. desce a Rua Faro preguiçoso, queria conversa. quando não encasqueta de tomar café depois de uma tigela de açaí conforma-se com um suco, sim, laranja para mim também. no caminho do bar, cantarola oitava abaixo, oitava acima, falseia, o que é bom para o dono é bom para a voz, larari, larará. e o projeto? se interessa, discorre sobre o disco do Criolo, pondera, concorda comigo, puta produção, mas. franze a sobrancelha, não sabe bem onde se sentar, então para. é minha irmã, de Nova Iorque, sussurra e retoma a ligação. eu só faço fumar e coço a barba e olho no olho enquanto ouço, mas nunca quando falo, eu sei. Dani tem um charme paulista, dirige-se à garçonete com arrogância irresistível. diz que “Boom” é a melhor música do disco, minha melhor música, ele acha. é emocionalmente imaturo, reflete, mas sem grilo aparente. aponta aqui e ali esse e aquele defeito do Rio, falta grana para ficar de vez, em março toca no Porto. as meninas nem deram nossa falta, reclamo. distraíam-se com o artesanato ou vai ver aproveitavam a ausência do Léo Rosa para pintar e bordar que é, enfim, o que fazem melhor quando não se dedicam ao amor. tarde feliz no Caroline Café, depois no Bibi. agora ele cismava de comer crepe de strogonoff, oferece. obrigado, tô sem grana. e tô mesmo, mas o Dani pagou tudo e voltamos. e voltamos no tempo. não, nunca fomos rivais, concluí. mesmo a malograda parceria de “Soberbo”, título que me faz jus, minhas desfeitas, suas desfeitas, vá lá, mesmo o coração da mesma menina a dividir-se (imagina!), formamos bela dupla e desde o trágico Reveillon de Angra quando então nos conhecemos e ganhamos um torneio de sei lá que jogo e eu sabia que estava diante de um letrista à minha altura e ele também, só talvez nos suspeitávamos. hoje, porém, que nada. o sol se pôs mansinho no Jardim Botânico para ver brilhar o que na minha cabeça é importante de simples. arte é conversa fiada.

Leandro é do tipo que ri! e ri muito e ri à toa. mas ri assim de rachar o bico. e ri tanto que não cabe em si. conheci melhor o Léo, o Leandro, na casa do Rai, o Raimundo. ele e o Bolinho. o Bolinho também ri, quer dizer, a família é feliz. mas o Léo, o Léo quase dá raiva. é, porque quando a gente não conhece bem, embora eu conheça o Léo desde a casa do Rai, não dá pra entender tanto riso frouxo. eu não sou de rir desse jeito, então levei tempo e até hoje não entendo às vezes. e não é que eu não goste, hein, não sou mal-humorado, longe de mim! não é que eu não me pegue rindo junto, que eu não veja graça na sua graça, não. aliás, pudera eu ser do tipo que ri, mas rir assim, de rachar o bico. e não é que a vida do Léo seja fácil, hein, que nada! acho até que ele ri de pirraça, como que pra irritar a vida! e não é que ele não goste da vida, hein, que seja mal-humorado, não! conheço o Léo desde a casa do Rai, se tem coisa que ele gosta na vida é a vida. mas ele é mulher de malandro e ri até quando apanha, jamais vai chorar pelos cantos nem dar queixa da vida à polícia, vizinho, o escambau. se a brincadeira é essa, é rir, que seja! eu não sou de rir desse jeito que nem o Léo, o Emílio, o Green, o Dado. sim, porque o Leandro não é o único e é bom pensar que tem um monte de gente que nem o Léo, que não desperdiça lágrima à toa porque sabe o valor que a tristeza tem. risada não! risada é mesmo de graça, taí pra se usar. não pode é a gente que não ri muito nem à toa, querer chorar pitanga ao lado de quem racha o bico assim sem dó. periga sair pior do que chegou, se achando o infeliz mais infeliz do mundo porque além de tudo não sabe rir desse jeito.  eu mesmo, que conheço o Léo desde a casa do Rai, já levei um sem número de sorriso estampado na lata, quando tudo o que eu queria era uma ruga de preocupação que se compadecesse da minha dor. mas a gente aprende a lidar com tipos assim que riem, riem muito, riem à toa, e só fazem rir. e não é que eu minta, hein, que eu esconda as minhas lamúrias do Léo, do Emílio, do Dado ou do Green, não! Se a coisa tá preta e eu trombo um feliz desses pela frente, trato de ficar feliz junto que é pra não me aborrecer. e rio do meu bolso furado e do meu peito partido e da minha vida ao avesso e quando vejo estou rindo sozinho do que nem eu sabia ter graça. nem eu nem o Dado, o Green, o Emílio. só o Léo. porque o Léo, mais que qualquer um, sabe de tudo. sabe de tudo e ri.

Maria é do tipo que chora. não à toa, eu sei, Maria é mulher forte. mas acontece que chora, pois já vi Maria chorar e é mesmo um aguaceiro. ela chora com música, principalmente. não com qualquer música, imagina, Maria é mulher forte e sabe de música como poucos. chora com música boa ou pelo menos de amigo bom. digo isso porque já vi Maria chorar e não é coisa à toa, é mesmo um aguaceiro. chorou quando ouviu Linda Rosa a primeira vez, por exemplo. eu não vi, é verdade, acho que não nos conhecíamos ainda. mas sei que chorou porque o Gugu me disse e não foi pouca coisa. sim, Maria é mesmo do tipo que chora. me lembro um dia, esse dia eu lembro, foi comigo, ela pediu que eu recitasse a letra de Jardim de Alah. veja bem, recitar! eu nunca havia recitado coisa alguma assim, a seco. pois ela queria que eu recitasse Jardim de Alah! veja bem, não era cantar por cantar, era mesmo recitar! não se deve separar letra e música, e música, eu disse, não é só letra e melodia, tem a harmonia que é música também e o Kiari não ia gostar que eu... mas ela queria que eu recitasse e eu recitei. e Maria chorou e chorava aos soluços. é estranho quando a Maria chora com uma música, e não é porque dói nem nada. chora porque chora porque chora. e é ainda mais estranho quando a música é da gente e ela chora, quase não dá tempo de sentir orgulho. é não ter onde enfiar a cara, há de se embarcar e embargar com Maria. depois soube que ela chorou com a Moça da Plateia, o Aureo falou. daí foi terréivel porque a letra é minha e eu não vi Maria chorar. quase me senti traído, como assim Maria chorou com a nossa música e eu não estava lá pra não saber onde enfiar a cara? há de se embarcar e embargar com ela! e o Aureo se ria. mas é assim, Maria é do tipo que chora. chorou com música do Tomaz, que eu sei, chorou com Axé Acapella e com uma porção de músicas, Maria. então passei a mostrar minhas músicas cheio de segundas intenções, tipo uma tara em suas lágrimas. ou vai ver comecei a achar que a música só era boa se ela abrisse o berreiro. e não é assim que a banda toca, eu sei, Maria é mulher forte, não chora à toa. chora com música boa ou pelo menos de amigo bom ou quando menos se espera. mas acontece que chora, pois já vi Maria chorar e não é pouca coisa, é mesmo um aguaceiro.