O mito de Rahsa Ssale
jamais ganharia força para além de sua época senão através dos curiosos da alma
humana e suas facetas mais vis. Reza a lenda que vivia como as donzelas de
então, à espera de um bravo infante que a desposasse com toda pompa e circunstância.
Quis o destino, porém, que a nobre e abastada princesa Airam, cuja lira
encantava a todos, arrebatasse o coração daquela simples camponesa dos
arredores de Bacoroso.
Não eram ainda tempos
de telenovela e cantoras de MPB e aquele principado estava sob o espectro de
costumes morais retrógrados, contra os quais a própria Rahsa se negava a lutar.
Não admitia nem diante do espelho a idéia de estar apaixonada pela herdeira do
trono de D’ugá, repudiava-a com mais fervor do que as chamas a que seu próprio coração
a condenara e mesmo quando já tomada pelo langor de seu desejo obscuro,
convencia-se – e aos outros – de que estava a enamorar um jovem cavalheiro de
traços delicados, mas pulso firme.
A princesa, apesar de
amável e zelosa, sabia, sim, ser justa e muito rígida – virtudes pelas quais
fizera jus à adoração popular. Não entendia, pois, como pudesse ser responsável
a um só tempo por tanto clamor público e desdém matrimonial, por assim dizer.
Rhasa, por sua vez, queixava-se sem cerimônia a quem quer que fosse das
dificuldades de se amar alguém com os afazeres e a exposição de Airam, muito
embora nunca tenha deixado de gozar do status de consorte, das jóias da coroa e
de tudo quanto sua nova posição, ainda que secreta, lhe passara a proporcionar.
Airam compreendia que seu amor era recíproco e verdadeiro, mas esperava de sua
amada a mesma devoção e carinho, o mesmo brilho nos olhos que a faziam
suspirar.
Um dia, farta daquela
situação inóspita, decretou a proibição, em toda a cercania, do porte e consumo
de amores não consumados, desejos mal resolvidos e sentimentos confusos em
geral. Houve um surto num primeiro momento e as cadeias e calabouços não
comportaram a quase totalidade da população. Foi dada, então, anistia aos
jovens, salvo os reincidentes, aos poetas românticos e adotou-se a política de
vista grossa para as mulheres do signo de virgem. Rhasa Ssale, no entanto, só
viu ameaçada sua liberdade quando a princesa preparou um novo pronunciamento.
Temia que fosse o divórcio, em represália à sua eterna rejeição – assim, ela
deixaria de dispor de qualquer tipo de imunidade.
Eis que, do alto de
seu púlpito, diante de uma multidão abarrotada, Airam, simplesmente, abdicou do
trono, mais ou menos como Jânio, nos idos da década de 60 e, mais recentemente,
o Papa Bento XVI, para espanto de todos! Em seu último discurso, a princesa de
D’ugá, em demonstração absoluta de humildade, reafirmou a importância de seu
ato, mas julgou-se incapaz, por motivo de força maior, de condenar a amante.
Disse que morreria ao seu lado se o povo assim quisesse e lançou um olhar
comovente em direção a ela, digno dos heróis épicos.
Mas quando os
súditos, quedados de ternura e piedade, surpreenderam a princesa emérita com
aplausos e ovações, esta, agora uma cidadã comum, num rompante de paixão sem
precedentes, estendeu a mão para Rahsa, como que a convidá-la a ser feliz longe
dali: “vamos!” – quase podia-se ouvir – “é tempo de liberdade”. Ao que a
ex-camponesa de Bacoroso, lívida e segura de suas amarras, respondeu a todo
volume: “sou mulher do príncipe de D’ugá e daqui não saio!”
Dali em diante, tudo
foi senão silêncio e ninguém jamais pôde entender o que afinal se passava na
cabeça e no coração de Rahsa Ssale. Airam, desolada, deixou D’ugá até que seu
espírito sossegasse e ela então se desse conta dos limites de seu poder sobre a
misteriosa condição feminina. Voltou, tempos depois, casada e radiante com a
princesa Alu, do reino de Eçal, com quem adotara um filho, e retomou o poder,
eleita democraticamente pela população de seu país, agora uma república
federativa.
Pouco se pode afirmar
sobre o paradeiro de Rahsa e estima-se que tenha passado o resto de seus dias
entre o autoflagelo e a prática inusitada de ménage à trois tântrico,
modalidade por ela inventada. Seja como for, Ssale até hoje desperta a
indignação de minorias mundo afora e inspira jovens atrizes abiloladas do TBC,
o teatro blasé carioca. É... Como diz o sábio Inad Kcalb, “a vida é cheia
dessas coisas que não se pode entender!”
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