sexta-feira, 10 de maio de 2013



O mito de Rahsa Ssale jamais ganharia força para além de sua época senão através dos curiosos da alma humana e suas facetas mais vis. Reza a lenda que vivia como as donzelas de então, à espera de um bravo infante que a desposasse com toda pompa e circunstância. Quis o destino, porém, que a nobre e abastada princesa Airam, cuja lira encantava a todos, arrebatasse o coração daquela simples camponesa dos arredores de Bacoroso. 

Não eram ainda tempos de telenovela e cantoras de MPB e aquele principado estava sob o espectro de costumes morais retrógrados, contra os quais a própria Rahsa se negava a lutar. Não admitia nem diante do espelho a idéia de estar apaixonada pela herdeira do trono de D’ugá, repudiava-a com mais fervor do que as chamas a que seu próprio coração a condenara e mesmo quando já tomada pelo langor de seu desejo obscuro, convencia-se – e aos outros – de que estava a enamorar um jovem cavalheiro de traços delicados, mas pulso firme. 

A princesa, apesar de amável e zelosa, sabia, sim, ser justa e muito rígida – virtudes pelas quais fizera jus à adoração popular. Não entendia, pois, como pudesse ser responsável a um só tempo por tanto clamor público e desdém matrimonial, por assim dizer. Rhasa, por sua vez, queixava-se sem cerimônia a quem quer que fosse das dificuldades de se amar alguém com os afazeres e a exposição de Airam, muito embora nunca tenha deixado de gozar do status de consorte, das jóias da coroa e de tudo quanto sua nova posição, ainda que secreta, lhe passara a proporcionar. Airam compreendia que seu amor era recíproco e verdadeiro, mas esperava de sua amada a mesma devoção e carinho, o mesmo brilho nos olhos que a faziam suspirar. 

Um dia, farta daquela situação inóspita, decretou a proibição, em toda a cercania, do porte e consumo de amores não consumados, desejos mal resolvidos e sentimentos confusos em geral. Houve um surto num primeiro momento e as cadeias e calabouços não comportaram a quase totalidade da população. Foi dada, então, anistia aos jovens, salvo os reincidentes, aos poetas românticos e adotou-se a política de vista grossa para as mulheres do signo de virgem. Rhasa Ssale, no entanto, só viu ameaçada sua liberdade quando a princesa preparou um novo pronunciamento. Temia que fosse o divórcio, em represália à sua eterna rejeição – assim, ela deixaria de dispor de qualquer tipo de imunidade. 

Eis que, do alto de seu púlpito, diante de uma multidão abarrotada, Airam, simplesmente, abdicou do trono, mais ou menos como Jânio, nos idos da década de 60 e, mais recentemente, o Papa Bento XVI, para espanto de todos! Em seu último discurso, a princesa de D’ugá, em demonstração absoluta de humildade, reafirmou a importância de seu ato, mas julgou-se incapaz, por motivo de força maior, de condenar a amante. Disse que morreria ao seu lado se o povo assim quisesse e lançou um olhar comovente em direção a ela, digno dos heróis épicos. 

Mas quando os súditos, quedados de ternura e piedade, surpreenderam a princesa emérita com aplausos e ovações, esta, agora uma cidadã comum, num rompante de paixão sem precedentes, estendeu a mão para Rahsa, como que a convidá-la a ser feliz longe dali: “vamos!” – quase podia-se ouvir – “é tempo de liberdade”. Ao que a ex-camponesa de Bacoroso, lívida e segura de suas amarras, respondeu a todo volume: “sou mulher do príncipe de D’ugá e daqui não saio!” 

Dali em diante, tudo foi senão silêncio e ninguém jamais pôde entender o que afinal se passava na cabeça e no coração de Rahsa Ssale. Airam, desolada, deixou D’ugá até que seu espírito sossegasse e ela então se desse conta dos limites de seu poder sobre a misteriosa condição feminina. Voltou, tempos depois, casada e radiante com a princesa Alu, do reino de Eçal, com quem adotara um filho, e retomou o poder, eleita democraticamente pela população de seu país, agora uma república federativa. 

Pouco se pode afirmar sobre o paradeiro de Rahsa e estima-se que tenha passado o resto de seus dias entre o autoflagelo e a prática inusitada de ménage à trois tântrico, modalidade por ela inventada. Seja como for, Ssale até hoje desperta a indignação de minorias mundo afora e inspira jovens atrizes abiloladas do TBC, o teatro blasé carioca. É... Como diz o sábio Inad Kcalb, “a vida é cheia dessas coisas que não se pode entender!” 

Nenhum comentário:

Postar um comentário